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Raissa Brescia

Entre histórias e estórias: A “Árvore dos Contos”

Raissa Brescia dos Reis

Doutora em História Social da Cultura


Se de fato Ingeld e Freawaru jamais viveram, ou pelo menos jamais amaram, então em última análise é de um homem e uma mulher anônimos que provém sua história, ou melhor, foi na história deles que os dois entraram. Foram postos no Caldeirão, onde tantas coisas potentes passam eras em fervura lenta sobre o fogo, entre elas o Amor-à-primeira-vista. (J.R.R. Tolkien. Sobre Histórias de Fadas)

Alerta ao leitor desavisado: esse texto foi produzido por uma historiadora que acaba de ler seu primeiro livro de Tolkien, embora more em uma casa com mais de uma centena deles. Descrevendo brevemente, encontro-me ligada à obra deste senhor por um laço feito aqueles que unem caminhos por toda uma vida, isso apesar de ter só recentemente atentado a sua existência. Não levem a mal a inadequação, mas como se trata de um desfile de bestas, fui logo me encorajando. Como Faërie não é para especialistas, talvez meu ensaio não levante assim tanto estranhamento. No melhor estilo tolkeniano, vou chegar logo metendo a concha nessa sopa de ossos.


***


Na obra canônica Marxismo e filosofia da linguagem, publicada pela primeira vez em 1929, Mikhail Bakhtin (Volochínov) apresentava suas inquietações diante dos métodos então preponderantes no interior do tratamento da linguagem enquanto objeto de conhecimento sistemático no cenário europeu. O autor russo trazia em seu livro questionamentos e críticas sobre as apresentações e os enfoques dados ao desenvolvimento de ao menos duas grandes tradições ocidentais na área no momento.


A primeira, representada por Wilhelm Humboldt, acentuaria a dimensão subjetiva e a ação do indivíduo sobre a língua como o material a ser analisado por uma ciência da linguagem. A segunda, nomeada a partir da obra de Ferdinand de Saussure, por outro lado, separando “langue” e “parole”, ou seja, a dimensão mais ou menos estável e sistematizável, por um lado, e as variações em um mesmo período e ao longo do tempo, por outro, selecionaria somente a primeira como passível de ser entendida de forma objetiva e factual.


Para Bakhtin (Volochínov), se os discípulos de Humboldt erravam em atribuir inteira ou principalmente ao indivíduo o ato da enunciação, perdendo de vista o caráter externo e até arbitrário da língua e da linguagem, a corrente de Saussure desconsiderava a dialética necessária entre a linguagem enquanto instituição social e suas manifestações individuais, dadas sob a égide do enunciado, ao qual estaria reservada “a função criativa na língua”.


Focando-se de maneira mais detida na obra de Saussure e seus leitores, o texto de 1929 procurava traçar as ligações entre essa teoria da linguística e a filologia, acusando esta última de uma influência que implicaria na incapacidade da primeira em lidar com a linguagem enquanto elemento vivo. Para Bakhtin (Volochínov), a filologia se debruçava sobre inscrições incrustradas em monumentos antigos, sem se preocupar com o contexto social, histórico e ideológico de sua produção. Filha dessa filologia, a linguística saussurreana abordaria a língua com o intuito de destilar do vivido um conjunto de normas e leis gerais aplicáveis, transformaria, portanto, toda língua analisada em estrangeira, depurada das mudanças e das diferentes cargas simbólicas e políticas próprias ao fenômeno da comunicação verbal. Nessa argumentação, o filólogo é afeito ao trabalho com inscrições perdidas, textos indecifráveis, línguas sem falantes, corpos textuais parados no tempo, imóveis e sem vida.


A desatenção aos elementos diacrônicos que compunham a linguagem em suas relações com o mundo que a cercava, a usava, ou seja, com o homem em sociedade, enquanto ser político e econômico, inserido na materialidade da história, condenariam a linguística e a filologia ao estudo da língua morta e da cultura descarnada.


***


Em “On Fairy-Stories”, um texto não-canônico publicado pela primeira vez em 1964, mas originalmente parte de uma palestra proferida em 1939, J.R.R. Tolkien, um especialista em filologia da Universidade de Oxford, que escrevia então seu O Senhor dos Anéis, que viria a ser um marco na cultura pop do século XX no mundo ocidental, defendia que a literatura de “fantasia” deveria ter como principal característica a criação de um “Mundo Secundário”. Para o escritor, as “histórias de fadas”, como denominou a tradução do ensaio publicada no livro Sobre histórias de fadas em sua versão brasileira, só poderiam ser chamadas como tal se conseguissem promover um estado de “crença secundária”, a suspensão de um “Mundo Primário”, empírico, em nome de um mundo cujos sentidos, embora distantes do normalmente entendido como “real”, deveriam ser entendidos como verossímeis em seu conjunto. Em uma história de fadas bem-sucedida, o leitor seria convidado a entrar em Faërie.


Assim, os textos que poderiam realmente ser chamados de “histórias de fadas” deviam partir desse compromisso de formação de uma narrativa cujos elementos centrais produziam o sentimento de “possibilidade” de real, embora se apresentassem, pela quebra da “familiaridade” com o cotidiano, como elementos externos, como “fantasia” ou “magia”.


Para entender as origens desses escritos e dos temas que os constituíam, o autor propunha a imagem de uma panela em fervura: “Como sopa eu me refiro à história tal como é servida por seu autor ou narrador e como ‘ossos’, a suas fontes ou seu material”. O produtor dessas narrativas, segundo Tolkien, assim como o filólogo, andava munido desses “ossos”, dos quais depurava um caldo que só poderia ser servido na medida em que despertava o apetite de seus contemporâneos. Digo “produtor” porque, para Tolkien, esses contos não são necessariamente escritos, embora seja dessa forma que muitas vezes são acessados.


Criticando folcloristas e antropólogos, que usariam “as histórias não como se pretendia que fossem usadas, mas como uma fonte da qual possam extrair evidências ou informações sobre assuntos que lhes interessam”, o autor chamava atenção para o processo pelo qual analistas insistiam em deduzir que histórias com temáticas semelhantes, como “Eros e Psiquê” e a “Bela e a Fera”, eram iguais. Afinal, “são precisamente o colorido, a atmosfera, os inclassificáveis detalhes individuais de uma história e, acima de tudo, o teor geral que dotam de vida os ossos não dissecados do enredo, que realmente fazem a diferença”.


Para entender uma “história de fadas”, para conhecê-la, portanto, seria preciso, segundo Tolkien, farejar a vida, e não a sua ausência, a língua falada e não sua imobilidade. As mudanças no enredo e na escrita surgiam não como acidentes a serem corrigidos em busca de uma origem pura, mas como produtos dos “processos alquímicos” produzidos pelo tempo. Nessa panela borbulhante de sentidos da qual partiriam as narrativas de “fantasia”, encontrar-se-iam não apenas grandes mitos, ou ainda acontecimentos históricos, e sim o substrato de que é feito Faërie, esse “Mundo secundário”. Discordando de uma hierarquização entre “tradição popular” e mitologia antiga na formação dessa substância, o autor defendia que “homens anônimos, deuses e reis”, além do “‘elemento do conto de fadas’” estão



(...) no Caldeirão das Histórias, esperando pelos grandes vultos do Mito e da História e pelo Ele ou Ela ainda sem nome, esperando pelo momento no qual serão lançados no ensopado em lenta fervura, um por um ou todos juntos, sem levar em conta dignidade nem precedência.

Nessa lenta fervura, a seleção do autor não seria menos importante, constituindo-se em um processo de “sub-criação”. A concha é mergulhada, mas não de forma aleatória. O enunciado surge em sua função criativa. O “cozinheiro” seleciona o que vai retirar da sopa pois os “contos de fadas”, segundo Tolkien, não são intocáveis, não resistem ao tempo, não trazem incrustrados, como “fósseis”, seus temas, sentidos e personagens. Essas narrativas estão vivas.


Os elementos antigos podem ser extraídos, ou esquecidos e descartados, ou substituídos por outros ingredientes com a maior facilidade. (...) As coisas que lá existem muitas vezes devem ter sido mantidas (ou inseridas) porque os narradores orais, instintiva ou conscientemente, sentiram sua ‘significância’ literária.

Entre “caldeirões” e “cozinheiros”, Tolkien considerava a literatura de fantasia como objeto, mas também inscrevia em seu relato as experiências de um filólogo que se inquietava com os efeitos do tempo e das sociedades no estudo de suas fontes. Na “Árvore dos Contos” (Tree of tales), os galhos emaranhados representando possibilidades e temas disponíveis para a construção de sua narrativa política, intelectual, institucional e temática, estava provavelmente pendurado entre a linguística e a filologia, apresentadas como parentes por Bakhtin (Volochínov), embora também ecoasse críticas e propostas que o russo opôs a esses ofícios.


No prefácio da segunda edição de O Senhor dos Anéis, ainda na década de 1950, Tolkien afirmou que o livro que então se apresentava era o resultado de seu ímpeto por dotar de um “mundo, uma história, uma mitologia e um povo” as línguas que havia criado: para dar movimento às palavras, era preciso que fossem inseridas em um contexto. Era preciso animá-las. A falta de um fluxo histórico que embalasse os idiomas, o medo de que nunca fossem falados, pode ter sido o primeiro impulso para mergulhar a concha no caldeirão.


Como o historiador de Marc Bloch, o filólogo-escritor de Tolkien precisava ser “o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está sua caça”. Talvez Tolkien estivesse, no final das contas, repousando mais facilmente nos galhos cruzados entre o literato e o historiador, entre estórias e histórias.





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